Ainda ontem passou a Dra a dizer que na opinião dela tinha sempre que passar pela cirurgia, porque tratamento de vácuo era muito demorado. -Para quê que pergunto?
Quando o vejo a entrar até tenho medo da novidade que me vai trazer a seguir. - Então vamos fazer o que combinamos?
Gelei, como é que tenho coragem de ir fazer isto sem estar a dormir? Eu sou controladora, assim posso ouvir o que vão dizendo, claro que falamos de tudo enquanto me escarafuncham a pele, ouço o metal a raspar no osso, e falamos de gastronomia, que me faz feliz, salivamos com a próximidade da hora de almoço. Não tenho coragem em olhar para o que estão a fazer, confesso que tenho até medo.
No final depois de muita alegria no trabalho recebo um palmadão no ombro e um - Ai de si que isto não pegue! Estamos fartos de si!!! que chata!!!
-E eu? não vou fazer uma festa, vou fazer várias quando me livrar de vocês!
Quarta-Feira dia de visita médica, neste dia tudo é lavado arrumado e orientado mais cedo para receber as visitas de suas reverências Srs Drs. que nunca vi na vida, que nunca falaram comigo, e que nunca cuidaram do meu caso, mas eles vêm me ver. O banho está tomado e estamos todos com o melhor ar possivel.
Junto aos pés da cama, reune-se a equipa, relembro apenas que fui intervencionada no passado domingo, eis que a Sra Dra e diretora do serviço questiona nem sequer olhando para mim - Quando é que esta senhora vai ser operada? - Olho incrédula para a enfermeira e pergunto em mudo - Outra vez? a quinta vez?
Desato a chorar, fecham o cortinado para ter mais "privacidade" tentam me acalmar ao que eu respondo - Deixem-me desabafar! Choro, choro por tudo, por todas as noites sem dormir, pelo cheiro a merda que invade o quarto, pelas perspectivas defraudadas, pela minha mama que se perdeu no mei de tanta cirurgia, pela minha escolha e ter insistido em ter mama, quando tudo o que resta é um abcesso. Arrependo-me mil vezes ter escolhido ficar com algo no sitio do nada. Arrependo-me mil vezes achar e confiar que os médicos iriam resolver uma coisa que o meu corpo não queria.
E agora iria ainda ser operada novamente?
Cheguei ao limite, entre lágrimas e ranho disse que não tinha capacidade nem mental nem fisica para me sujeitar a outra cirurgia, que não dormia, que estava cansada, que a unica coisa que queria era tirar tudo e ir embora. Sugeriram um psiquiatra, ao qual disse que eu não estava maluca apenas cansada e que qualquer medicação que me dessem agora me iria prejudicar no futuro, eu levei litros de antibiotico, tomo dezenas de comprimidos, já fiz quatro cirurgias em menos de 2 meses e querem que eu esteja com piadas e a rir o tempo todo. Tenho o meu braço todo negro puseram um cateter quase obrigados na ultima cirurgia, porque não permiti que me espetassem nem mais uma agulha. Não quero mais isto Dr. quero acabar com isto!
- Vamos fazer um desbridamento dessa pele que está morta, com anestesia local na sexta feira, colocamos um penso de vácuo e no domingo eu volto a ver, se estiver a funcionar domingo vai para casa com o penso de vácuo.
Não me disse que eu ia voltar para colocar um enxerto, acho que não quis me dar essa noticia hoje.
Mais uma cirurgia e não melhorou nada, a recuperação pós cirurgica está cada vez mais dificil, o meu nivel de stress está a rebentar pelas costuras e ainda é suposto sorrir a cada está melhor, correu bem, está com melhor ar. Foda-se, então se esta merda está a correr mal desde o inicio, qual é a parte do vai correr bem que eu não quero ouvir que esta gente ainda não entendeu!
Não digam nada, quem está na merda não quer ouvir vezes sem conta que vai correr bem, quando é que vai correr bem, quando morrer? O pior que eu posso ouvir com esta cara de cu, é que estou com bom ar, vão mentir para a puta que vos paríu!
Aqui posso deitar o lixo para fora, quem não gosta não lê, mas o lixo sai todo. Estou farta de ter espetativas e a cada cirurgia ela se perder, já vou na quarta, estou a fazer um tratamento de calor para aumentar os vasos sanguíneos, para agarrar o retalho, não gosto de o tratar desta forma, mas é apenas um pequeno retalho, uma feia amostra de tudo o que foi um dia uma mama. O tratamento é um horror, é o meu pesadelo, o quarto é quente e enche-se na hora das visitas e eu por baixo daquele cobertor de calor, que faz um barulho semelhante a um aspirador que tem que estar ligado de noite e de dia. Não me lembro da ultima noite que dormi. Tenho receio que o intestino deixe de funcionar, e não vejo melhorias nenhumas nem com mais uma cirurgia e muito menos com este tratamento.
Estou a eclipsar dos meus nervos! Estou a chegar ao limite da minha energia, não quero mais isto, não quero mais este processo, não quero mais mama, só quero sair daqui, incompleta, mas eu de volta!
Lembra-te dos risos, da alegria, da casa cheia, lembra-te do que foi bom, do que te trouxe de bom, das piadas que dei. O que eu mais amo é rir, o que me faz mais feliz são pessoas felizes. Amo quem faz as coisas por amor, adoro as boas e genuinas inteções, adoro abraços apertados, admiro quem cuida, admiro quem olha, quem está atento, quem luta com afinco.
Estou neste hospital há 27 dias, aqui chorei muito, mas ri ainda mais, aqui vi quem trabalha por amor, tanto amor, estou profunda e eternamente grata a quem cuidou de mim, e a quem cuidou de quem estava a partilhar o quarto comigo, fossem velhos ou novos sempre com alegria e sempre com amor, amor pelo que fazem. Senti desde o primeiro dia carinho, enfermeiros, médicos, auxiliares, senhoras do refeitório, senhoras da limpeza, tentaram amenizar o meu desconforto sempre. Também quem me conhece eu tento incomodar o menos possivel, compreendi que errar é humano, mesmo que o erro me tenha prejudicado muito. E deixei, deixei que me dessem colo quando estava muito dificil, chorei e falei dos meus medos e agradeci, cada penso, cada banho, cada prato de comida, cada favor. Passaram dezenas de pessoas por este quarto, homens mulheres, coisas simples, coisas complicadas, mas aqui onde acaba a dignidade humana, há gente com amor nas palavras e nos gestos.
Quando sorriu, quando gargalho, alivia a minha dor e dos outros, é assim que eu sou, e quando for embora daqui é só estas coisas que quero guardar no meu peito.
Os melhores amigos e a melhor familia que tornou a minha estadia mais leve, com livros, net, com almoços surpresa, com videos e mensagens de força, com visitas, com fotos, com risos. Tenho os melhores, tenho muita sorte!
Perguntaram-me o que eu tirava como lição daqui, a lição é que não há como controlar o que quer que seja, aceita que dói menos. O que eu levo comigo é o amor, eu estou repleta de amor, de alguma forma consegui tocar no coração de alguém que retribui, e tenho tanta sorte que sejam tantos.
Estou profundamente grata, não pelo que me dão, mas pelo que são para mim... e nestes 27 dias eu vi isso sempre. E se por algum motivo nos perdermos, leva contigo o meu gargalhar!
Mais uma moeda, mais uma voltinha, hoje é dia de ir ao bloco, againnnnnnn!
Pois então, depois de almofada de calor, máquina de vácuo, e muita esperança, orações e velinhas, lamento informar, que nem com velinhas isto lá vai... Eu a escrever isto tal e qual uma indecente descrente.
Ah e tal tens que ser positiva, ah e tal vai correr bem, ah e tal esta conversa nem parece tua... Parece minha sim porque eu estou zangada... eu preciso de me zangar, eu preciso de gritar, de dizer que só estão a fazer merda carregados de boas intenções.
Ai se eu soubesse... Se eu tivesse tido a coragem para ir para casa mutilada, se eu tivesse ido embora sem parte de mim. Mas por um motivo qualquer acreditei que era possivel retroceder ao que tinha ficado aos meus olhos perfeitos, eu não queria ficar sem parte de mim, eu tinha tanta esperança, tanta!!!
-Não me apetece falar Contigo, não me apetece ter que te dizer que confiei em ti e nos que te acompanham, não sei como vai ser, mas hoje não me apetece pedir-te que Guies as mãos de quem lá vai estar, ou sentir sequer que a sala está cheia de energia boa e luz, não me apetece Pedir-te nada. Faz o que tu entenderes... Afinal Tu é que mandas!
Quem é a besta que manda alguém ir para uma cirurgia de tantas horas onde está incluida uma abdominoplastia e uma reconstrução mamária, sem fazer um clister? Porque não está no protocolo. Puta que pariu o protocolo, o cu não era teu!!!
Pois então recapitulando, primeira cirurgia dia 04 de Dezembro tirar cancro com reconstrução, colocaram expansor porque não havia orçamento para prótese, quase um mês com dreno, quando fecham o dreno horas depois faço febre, 2 diagnósticos, MEGA acertivos de gripe, quando eu me queixava era da mama. Dia 31 Internada, dia 03 de Janeiro nova cirurgia para tirar o expansor porque afinal 4 dias depois de antibióticos atrás de antibióticos, chegaram à conclusão que era impossivel combater a bactéria num saco... 12 dias depois nova cirurgia na esperança infindada de me aproveitarem a pele da mama, afinal quem é que quer ir para uma lista de espera infindável? Não aproveitam e fazem um belo retalho, numa parte da mama que não oxigenou, ou não pegou como quiserem, tratamento com calor para aumentar os vasos sanguineos, não resulta e eu quase me sinto a morrer, 4 transfusões de sangue uma das quais me deixou o braço miserávelmente negro porque estava mal colocada a agulha. e neste final de dia que se tornou inesquecivel pelas piores razões, eis que têm que me tirar a merda do cu... simmmm tirar a merda do cu porque me apertaram as entranhas e a merda fez rolha. Pari gémeos pelo cu 2 vezes neste dia, achei que morria. Pedi para morrer, se era para passar por aquilo!
Aqui acaba-se a dignidade humana!!! Não há culpados, não há, porque também há anjos, eu tenho muita sorte, a dor seja ela qual for depois, de ir vai e nós mesmo que falemos nela não a conseguimos reproduzir. Quis morrer de tanta dor... mas tive anjos de bata branca a consolar, a dar o melhor, a salvar-me da minha dor...
Dói e a dor não é apenas fisica, é dor na alma. Olho para o lado e vejo quanta sorte ainda tenho apesar da dor. Sei que vai passar, sei que não tenho como controlar e nem sequer eu nem tu sabes se irá correr bem, porque afinal até aqui correu tudo mal...
Depois da 3 terceira operação e sendo esta de mais de 10h, o correu bem após a cirurgia é palavra recorrente se sais de lá viva...
Tudo é possivel acontecer quando entras num bloco de operação, as intenções, os planos e perspectivas até podem ser as melhores, mas nunca sabes.
Eu primo por excesso de optimismo, e nunca em nenhuma das ocasiões eu perguntei os riscos de não correr como era previsto. Perguntei qual era a minha melhor opção, perguntei se fosse para mulher ou filha o que ele sugeria, e a resposta foi sempre a mesma , dentro de tudo o que era possivel. Continuo contastemente a bater na mesma tecla, eu tinha exteriormente ficado com o meu tecido mamário completo. Achei que na brevidade da cirurgia me seria aproveitado o que era meu, nunca me passou pela cabeça tendo eu a minha pele, acordar com um retalho!
Aceita que dói menos, aceita que dói menos... Não! Porque é que tenho que aceitar?
Porque é que tenho que aceitar que isso é correr bem? Porque é que tenho que aceitar que me saíu na rifa o bicho! Porque é que tenho que aceitar um retalho? Quando estava perfeito, quando estava a correr tudo bem, porque é que eu tenho que continuar a ser positiva o suficiente para acreditar que correu bem?
Não correu bem, não correu bem, não aproveitaram a minha pele, esticaram me as entranhas para preencher com um musculo um retalho... Vai ficar bem! A sua barriga está linda! Mas quem é que pediu uma barriga linda? eu só queria a minha mama, o meu tecido, a minha pele.
A frustração consome-me em algumas horas noutras eu tento suavizar. Sinceramente ninguém está preparado para isto, e após a primeira cirurgia eu só pensava em como eu tinha sorte, em como eu tinha sido abençoada. Não vale a pena pensar no que foi... Correu mal... mas tenho sorte não é?
Dei entrada no dia 31 de Dezembro, dia da festa, dia de listas, dia de cuecas novas, dia de fogo de artifício, de brilhos, de notas na mão e champanhe. Eu a enfermeira Paula à meia noite certinhas, a injectar o antibiótico nas minhas veias, foi o nosso brinde ao novo ano.
Até agora foram muitas horas de incerteza, dúvidas e medos, mas também de muita gargalhada, histórias partilhadas, de gente que entra e sai, dias de criatividade para mais facilmente passar o tempo.
O grande dia é amanhã, ou melhor a grande cirurgia é amanhã.
O meu corpo é anti coisas que não são minhas, já devia ter percebido...
Unhas postiças saltavam, DIU tentei 2 vezes, e o expansor foi posto a correr num instantinho, com muito sofrimento, com mesmo muito sofrimento, pensei que iria para casa assim, sem mama!
Tirei dúvidas:
- Porque é que me foi colocado expansor quando eu tinha tecido mamário completo?
- Porque estavam esgotadas as próteses mamárias e seria necessário uma autorização do hospital, sendo que foi uma decisão feita no bloco operatório e como correu melhor do que era expectável, recorremos à decisão provisória do expansor, foi feito o possível com os recursos do hospital.
- Quais são as possibilidades agora?
- O importante agora é combater a infeção. Depois há várias opções, ir para casa e ir para lista de espera para colocar a prótese.
- Pois mas eu não vou sair daqui assim.
Abanou a cabeça sem tirar os olhos de mim e li na testa dele, estamos fodidos!
2 dias depois veio a proposta.
- Kuruka, temos várias opções, a primeira é deslocar um músculo da barriga e com ele preencher a mama. Dizia isto com um ar sério e de sofrimento, que eu não sabia se seria o dele ou o meu, agora sei que era dos 2, uma cirurgia muito longa e um pós operatório lixado.
-Se tivesse que optar, sendo a sua mulher ou filha, qual seria a sua opção?
- Eu decidiria por esta opção, dificilmente irá rejeitar uma coisa que é sua, e caso haja uma infeção será muito mais fácil de controlar e combater porque é um tecido vivo.
Quarta-feira vou operá-la!
- OK Dr. fico mais descansada agora, porque não haver solução imediata estava a ser difícil de digerir.
Estou cagada! Tantas horas e se eu não acordo, mas sei que eles vão fazer o melhor, porque já o fizeram antes, apenas o meu corpo não quis aquilo. Perguntei-me tantas vezes porquê, tentei rir para não chorar, cuidei dos que aqui estavam no quarto comigo para me esquecer de mim. Uma noite não deu, chorei até de manhã, saiu tudo. Perguntei-me porque eu não assumia o que sentia, porque me preocupava em não preocupar os outros, porque é que eu não desabafava quando doía e só conseguia falar das dores quando já conseguia rir, perguntei-me o que estava a fazer de errado.
-Nada Kuruka, essa é a tua essência, essa és tu, não estás a fazer nada de errado. Tu estás a viver e a fazer o melhor com as ferramentas que tens ao dispor, não te culpes pelo trabalho, ou preocupação que causas nos outros, porque seria igual se fosse ao contrário. Isso chama-se amor e o que mais gostas é de rir, por isso continua a fazer o que fazes, aliviar o peso dos outros com a tua leveza em SER e em viver. Continua a fazer os outros felizes que é o que mais te faz feliz. EU estou contigo em todas as horas e VOU iluminar a tua cirurgia!
-Grata Deus do meu coração sem ti era mais difícil!
Ontem à noite tive a perfeita noção que não tinha tido tempo para me despedir da pessoa que era, que desde de Julho não tinha refletido bem, e olhado bem para mim. Que me entreti a arranjar projetos, coisas, ideias, para me esquecer de mim.
Penso que quando dói, não é por mim porque eu aguento, mas pelo sofrimento ou preocupação que causamos aos outros. Aqueles que amamos tanto que não suportamos que sofram.
Mas hoje não está fácil! No hospital tento ser leve, e brincar para que o sofrimento das horas que não passam serem mais leves, cuidamos um dos outros, sabemos como dormem melhor, o que comem, o que gostam, passamos a ser uma pequena família, em que sabemos as histórias, as vidas, as dores. Esta distração de mim alivia a minha dor.
Mas hoje não está fácil!
Não é querer parecer mal, com tanta coisa má e mais grave a acontecer à minha volta, mas isto precisa de sair.
Bicho feio no expansor, tão feio e tão colante, que nem com todo o tipo de antibiótico se foi embora, se não foi, então expansor no lixo.
Vamos começar do zero, bloco, tira o expansor, 2 drenos para limpar a infeção e esperar...
Uma frustração disfarçada, de piadas e cuidados com os outros doentes companheiros. As lágrimas que se escondem da família, para que não lhes doa o coração. Uma leveza, ligeireza e um não pensar, para não doer o que se perdeu.
Lê-se revistas, vê-se as vidas que continuam lá fora, rimos com as partilhas dos amigos no Facebook, para esquecer que a minha parou por breves momentos.
A agenda cor de rosa está à espera de planos, estamos à espera que o bicho feio se vá embora